Reuso da água subterrânea

Oportunidades, desafios técnicos e normativos para empresas em tempos de escassez hídrica

Mário Marcelino, Dr.

10/7/20258 min read

Reuso da água subterrânea: oportunidades, desafios técnicos e normativos para empresas em tempos de escassez hídrica

1. Visão geral e por que importa

O reuso da água subterrânea — comumente operacionalizado como Managed Aquifer Recharge (MAR) ou “recarga artificial de aquíferos” — é a prática deliberada de devolver água tratada (ou água superficial apropriada) ao meio subterrâneo para armazenamento, melhoria de qualidade e posterior retirada para usos urbanos, industriais ou agrícolas. Em cenários de escassez hídrica, MAR aumenta a segurança hídrica, provê reserva estratégica, reduz extração direta de aquíferos contaminados ou sobre-explorados e dá resiliência a eventos extremos (secas). A literatura técnica e guias internacionais colocam MAR como ferramenta central de adaptação às mudanças climáticas e à variabilidade de oferta hídrica.

2. Técnicas de MAR — opções e princípios operacionais

As técnicas de MAR podem ser agrupadas em três grandes famílias, cada uma com implicações técnicas e custos distintos:

  1. Infiltração em superfície (spreading/soil-aquifer treatment — SAT): água tratada é lançada em lagoas, canais ou valas para percolar através do solo, que atua como filtro biológico e físico; apropriado quando há áreas permeáveis e espaço para bacias de infiltração.

  2. Filtração por margem de rio (riverbank filtration / RBF): aproveita a percolação natural das águas fluviais através de sedimentos de margem para “pré-tratar” água antes de captação subterrânea — técnica usada para melhorar qualidade e segurança microbiológica.

  3. Injeção direta (direct injection / aquifer injection): água tratada é injetada por poços diretamente no aquífero; exige tratamento avançado (alto nível de remoção de patógenos, nutrientes e contaminantes emergentes) e controle rigoroso de qualidade para evitar danos ao reservatório.

Cada técnica exige projeto hidrogeológico (permeabilidade, níveis freáticos, estratigrafia), dimensionamento hidráulico (taxas de infiltração, tempo de residência), e avaliação dos processos de melhoria ou deterioração da qualidade que ocorrerão durante a transitória e após armazenagem.

3. Oportunidades do Reuso da Água Subterrânea

O reuso de água subterrânea consiste na captação, tratamento e reinserção de águas residuais ou águas já utilizadas em processos industriais, urbanos ou agrícolas em aquíferos, para posterior utilização. Esse conceito oferece diversas oportunidades:

  1. Segurança hídrica e redução de riscos operacionais: Empresas localizadas em regiões com disponibilidade limitada de água podem garantir abastecimento contínuo, mitigando o risco de interrupções na produção.

  2. Redução de custos operacionais: O reuso diminui a dependência de água superficial ou tratada, que geralmente possui custo elevado, especialmente em regiões urbanizadas com tarifas industriais.

  3. Atendimento a normas ambientais e ESG: O reuso contribui diretamente para metas de sustentabilidade e compliance ambiental, fator cada vez mais valorizado por investidores, reguladores e consumidores.

  4. Aproveitamento de águas residuais industriais: Processos industriais que geram efluentes podem tratá-los e reintroduzi-los no ciclo produtivo ou no aquífero, fechando o ciclo da água e aumentando a eficiência hídrica.

Desafios Técnicos e Regulatórios

Apesar das vantagens, o reuso da água subterrânea apresenta desafios significativos que exigem planejamento, investimento e monitoramento constante:

  1. Qualidade da água: Diferente do reuso de água superficial, a água subterrânea exige atenção especial à contaminação por metais pesados, nitratos, pesticidas ou resíduos industriais. Sistemas de tratamento físico-químico, biológico e membranas de osmose reversa podem ser necessários para adequar a água aos padrões desejados.

  2. Risco de contaminação do aquífero: A injeção de águas residuais em aquíferos sem tratamento adequado pode degradar a qualidade da água natural e impactar outros usuários e ecossistemas. É fundamental seguir normas técnicas de recarga artificial e monitoramento de aquíferos.

  3. Complexidade regulatória: No Brasil, órgãos como ANA (Agência Nacional de Águas) e comitês de bacias estabelecem regras rigorosas sobre captação e reinjeção de água subterrânea, exigindo licenciamento ambiental, relatórios periódicos e análise de impacto hidrogeológico.

  4. Custos iniciais de investimento: Sistemas de reuso e recarga subterrânea exigem infraestrutura complexa, incluindo estações de tratamento, tubulações de reinjeção, monitoramento remoto e pessoal qualificado.

Exemplos Práticos e Estratégias

Alguns exemplos globais e nacionais ilustram como o reuso de água subterrânea pode ser implementado:

  • Indústria química e petroquímica: Muitas empresas utilizam águas residuais tratadas em processos internos, reduzindo a captação de água doce de aquíferos e rios.

  • Setor de mineração: Projetos de recirculação de água em mineração têm permitido reduzir a extração de água subterrânea em regiões críticas, especialmente em minas de ferro e ouro no Brasil.

  • Agricultura irrigada: Sistemas de irrigação de precisão combinados com recarga de aquíferos evitam a sobreexploração do lençol freático, garantindo produtividade mesmo em períodos secos.

  • Projetos urbanos e industriais integrados: Algumas cidades adotam recarga artificial de aquíferos com água tratada proveniente de esgotos e rios, criando uma reserva estratégica para indústrias e abastecimento urbano.

4. Tratamento exigido — tecnologias e objetivos

O nível de tratamento pré-injeção ou pré-infiltração é a variável crítica. Objetivos típicos:

  • Proteção microbiológica: remoção de vírus, bactérias e protozoários (barreiras múltiplas; desinfecção avançada; retenção por solo).

  • Remoção de matéria orgânica e nutrientes: processos biológicos (lagoas, wetlands), filtração e adsorção (leitos de areia, filtros rápidos), membranas quando necessário.

  • Contaminantes emergentes (PPCPs, PFAS, pesticidas): tecnologias como Osmose Reversa (RO), oxidação avançada (AOP), adsorventes e sistemas de carvão ativado são frequentemente exigidas antes da injeção direta ou quando o aquífero alimenta abastecimento público.

  • Estabilidade geogeoquímica: correção de pH, remoção de ferro/manganês, manejo de risco de precipitação mineral que pode entupir poços e poros do aquífero.

Na prática industrial e municipal, combinações como pré-tratamento físico-químico → MBR (biorreator de membrana) → RO → desinfecção têm sido usadas quando o padrão de qualidade requerido é muito estrito (ex.: recarga em aquíferos potáveis ou injeção direta). O projeto deve estimar também custos operacionais (energia, reposição de membranas, descarte de concentrados de RO).

5. Riscos principais e mitigação

Para empresas que consideram MAR, os riscos técnicos e ambientais mais relevantes incluem:

  • Contaminação do aquífero (patógenos, químicos) — mitigada por abordagens de barreira múltipla, monitoramento e limites operacionais de qualidade.

  • Entupimento físico e biofouling — exige projeto de pre-filtração, manutenções periódicas e estratégias de gerenciamento de ciclos de operação para evitar queda de infiltração.

  • Mobilização de contaminantes naturais (p.ex. arsênio, ferro) por alteração redox do aquífero — avaliado via testes de colunas e ensaios piloto.

  • Impactos a outros usuários (conflitos por direitos hídricos, alteração do fluxo subterrâneo) — demanda avaliação hidrogeológica regional e governança participativa.

Planos de gestão de risco devem incluir ensaios de bancada e piloto, monitoramento contínuo (piezômetros, amostragem química e microbiológica, monitoramento de parâmetros geofísicos e ensaios com traçadores), e procedimentos de contingência (interrupção da alimentação, extração emergencial, remediação).

6. Aspectos regulatórios e normas (Brasil)

No Brasil, o reuso e a recarga artificial envolvem um conjunto de normas técnicas e exigências de licenciamento ambiental. Entre documentos e normas relevantes:

  • ABNT NBR 16783:2019 — diretrizes sobre reúso de águas em edificações e aspectos de projeto (aplica-se a reúso não potável e gestão da água).

  • ABNT NBR 16782:2019 — requisitos e diretrizes para conservação e reúso em edificações (normas complementares tratam de padrões de qualidade).

  • Diretrizes técnicas e guias estaduais (ex.: CETESB em São Paulo disponibiliza orientações práticas sobre reúso e requisitos locais).

Além das normas ABNT, projetos de recarga artificial exigem licenciamento ambiental por órgãos estaduais e/ou federais, avaliação de impacto hidrogeológico e planos de monitoramento. A literatura técnica nacional aponta que a prática do MAR no Brasil ainda é incipiente, com experiências locais (bacias de infiltração, barragens subterrâneas) e necessidade de normatização mais robusta para escalonamento.

7. Casos de referência — lições práticas

Orange County Groundwater Replenishment, Califórnia (EUA)

O Groundwater Replenishment System (GWR) do Orange County é frequentemente citado como referência de escala: trata e recicla efluente municipal altamente tratado, combinado com processos avançados (microfiltração, osmose reversa e desinfecção por peróxido/UV), e injeta/recupera água para suprir metade da demanda de água potável em parte da região — garantindo segurança hídrica para ~500.000 pessoas e demonstrando controles rigorosos de qualidade e governança institucional. Lições: barreiras múltiplas e transparência com o público são críticas.

Experiências no Brasil e América Latina

No Brasil, o uso de técnicas de MAR tem sido aplicado em escala menor: infiltração em bacias, diques subterrâneos (underground dams) e experimentos de recarga na região semiárida. Revisões sistemáticas e estudos de caso nacionais discutem viabilidade técnica, necessidade de integração com gestão de bacias e lacunas regulatórias. Projetos de mineração e indústria têm adotado recirculação e reúso interno como estratégia complementar, mas a recarga controlada de aquíferos com água regenerada ainda é pouco difundida.

8. Custos, economia e instrumentos de incentivo

O custo do MAR varia muito: infraestrutura (estações de tratamento avançado, memórias de injeção, bacias), CAPEX de tratamento (MBR, RO), OPEX (energia, manutenção) e monitoramento contínuo. No entanto, ao internalizar riscos de falta de água (interrupção produtiva, multas por não cumprimento contratual, perda de produtividade), o retorno de investimento pode ser favorável. Instrumentos públicos que incentivam MAR incluem subsídios, contratos de compra de água a priori, tarifas diferenciadas e mecanismos de pagamento por serviços ambientais. A experiência internacional mostra que regimes regulatórios estáveis e mecanismos financeiros são essenciais para atrair investimento privado.

9. Recomendações práticas para empresas (check-list)

  1. Estudo de viabilidade hidrogeológica (incluindo modelagem do fluxo de água subterrânea e testes de colunas).

  2. Ensaios piloto antes da escala, para avaliar tratamento, entupimento e reação geoquímica.

  3. Projeto de barreiras múltiplas de tratamento e plano de monitoramento robusto (qualidade, traçadores, telemetria).

  4. Licenciamento e governança: engajamento com órgãos ambientais, comitês de bacia e comunidades potencialmente afetadas.

  5. Planos de contingência e seguro para riscos de contaminação ou falha operacional.

  6. Avaliação econômica integrando risco: custos diretos x benefícios estratégicos (resiliência, conformidade ESG, imagem).

9. Conclusão — oportunidade estratégica, mas com compromisso técnico e institucional

O reuso da água subterrânea (MAR) é uma ferramenta madura do ponto de vista conceitual e demonstrada em casos de sucesso internacionais; porém, sua aplicação segura e escalável exige combinação de tecnologia de tratamento avançado, projeto hidrogeológico rigoroso, monitoramento contínuo, quadro regulatório claro e governança participativa. Para empresas, MAR oferece uma vantagem estratégica em regiões vulneráveis à escassez — desde que se invista nas barreiras técnicas e institucionais necessárias para mitigar riscos e proteger recursos comuns.

Referências utilizadas

  • IAH / UNESCO — Managed Aquifer Recharge: Overview and Governance (IAH special publication).

  • UC Berkeley / Case Study — Groundwater Replenishment System (Orange County).

  • Shubo, T. et al., An Overview of Managed Aquifer Recharge in Brazil (Water, MDPI, 2020).

  • ABNT NBR 16783:2019 / NBR 16782:2019 — normas brasileiras sobre reúso e conservação de água em edificações; materiais e guias práticos estão disponíveis para consulta.

  • CETESB — página e orientações sobre reúso de água (estado de São Paulo).