Recursos Hídricos Subterrâneos

Possível crise invisível no horizonte

Mário Marcelino, Dr.

10/30/20255 min read

Crise hídrica invisível no horizonte:

o potencial de colapso de abastecimento pela exploração das águas subterrâneas no Brasil

A percepção pública sobre crise hídrica costuma focar rios, reservatórios e estiagens. Mas existe um risco menos visível — e igualmente crítico — que avança silenciosamente: o esgotamento de aquíferos alimentadores de poços, nascente e rios. No Brasil, o aumento exponencial de captações subterrâneas, a perfuração massiva de poços e a ausência de gestão integrada colocam em risco não só abastecimentos locais como também a manutenção de vazões de córregos e rios, podendo conduzir a um colapso de abastecimento em regiões dependentes de água subterrânea.

Entendendo a dinâmica — como e por que o aquífero “some”

  1. Balanço de água e recarga — Um aquífero funciona como um reservatório: recebe recarga (infiltração de chuva, percolação de rios/lagos) e perde água por extração (poços) e descarga natural (vazão base para rios e evapotranspiração). Quando a taxa de extração excede a taxa de recarga, o nível do lençol freático cai — fenômeno chamado rebaixamento ou drawdown.

  2. Cone de depressão e interferência entre poços — Poços produtivos geram um cone de depressão local; quando poços próximos somam captação, cones multiplicam-se, ampliando a área afetada e reduzindo níveis regionais. Em aquíferos com baixa transmissividade, pequenas extrações já causam quedas acentuadas.

  3. Conexão com recursos superficiais — Em muitos sistemas, aquíferos alimentam rios (vazão de base). O bombeamento excessivo pode inverter o fluxo (rios perdem água para o subsolo) e reduzir vazões superficiais, afetando usos múltiplos a montante e jusante—o que transforma a crise subterrânea em crise de bacias. Estudos recentes indicam que o uso excessivo de água subterrânea ameaça o fluxo de rios em áreas do país.

  4. Efeitos irreversíveis e qualidade — Além da quantidade, o bombeamento excessivo pode provocar intrusão salina (em áreas costeiras), subsidência (afundamento) e concentração de contaminantes pela redução do volume de água — tornando o recurso impróprio ou mais caro de tratar.

Evidências e sinais no Brasil

1) Crescimento abrupto das captações

O Serviço Geológico do Brasil (SGB, antigo CPRM) registra um aumento expressivo de pontos de captação documentados: 12.693 novos poços cadastrados apenas em 2024, elevando para mais de 382 mil os registros de pontos de água/poços na base SIAGAS. Esse incremento aponta para uma maior pressão sobre aquíferos já sob estresse e indica a necessidade urgente de monitoramento e gestão.

2) Relatórios de conjuntura e fragilidade institucional

O Informe de Conjuntura de recursos hídricos da ANA destaca tendências preocupantes: aumento da dependência por águas subterrâneas em períodos de seca, variação pluviométrica mais extrema e lacunas na governança e monitoramento das explorações subterrâneas, fatores que amplificam riscos regionais de escassez.

3) Oeste baiano — Urucuia e o rebaixamento associado à irrigação

No Oeste da Bahia estudos técnicos e relatórios regionais mostram rebaixamentos e impactos significativos sobre aquíferos como o Urucuia, que sustenta projetos de irrigação intensiva. Relatórios técnicos da região apontam para diminuições de níveis e preocupações sobre a sustentabilidade da captação irrigativa, além de efeitos sobre rios locais. A irrigação tem sido identificada como vetor principal do rebaixamento naquela região, com impactos sobre segurança hídrica regional.

4) Interior de São Paulo — rebaixamentos urbanos e periurbanos

Em áreas do interior paulista e na própria Região Metropolitana de São Paulo já existem registros de rebaixamentos locais do lençol que afetam poços e infraestrutura urbana (alguns diagnósticos apontam quedas de nível na ordem de metros em pontos críticos), bem como iniciativas de monitoramento por comitês e agências locais (PCJ, CETESB) que reconhecem a necessidade de gestão das águas subterrâneas. Esses sinais locais são indicativos de um problema que pode se agravar com a contínua expansão de poços e redução de recarga.

Por que temos pouca visibilidade — obstáculos à gestão

  • Monitoramento insuficiente: muitos poços (especialmente rurais e privados) não são cadastrados ou monitorados regularmente, criando “zonas cegas” sobre o real volume extraído. O crescimento de poços registrados em SIAGAS é um primeiro passo, mas ainda há subregistro e atraso na atualização de dados.

  • Fragmentação institucional: a gestão de águas subterrâneas envolve estados, municípios, comitês de bacia e órgãos federais. Falta integração de bases e regras harmonizadas para outorga, fiscalização e gestão adaptativa.

  • Foco em disponibilidade superficial: planos e investimentos frequentemente priorizam reservatórios e rios, subestimando o papel crítico dos aquíferos no abastecimento urbano e rural.

  • Uso setorial intensivo (irrigação, indústria): grandes explorações para agricultura irrigada e uso industrial não raro avançam sem medidas de compensação ou recarga artificial.

Consequências potenciais — o que pode acontecer se nada for feito

  1. Redução de vazões de rios e afluentes, com perda de abastecimento para municípios que dependem de captações superficiais e subterrâneas integradas.

  2. Frequência maior de racionamentos locais, especialmente em municípios do interior que dependem de poços.

  3. Conflitos de uso entre agricultura, indústria, abastecimento urbano e conservação ambiental.

  4. Aumento de custos operacionais — poços mais profundos, tratamento adicional e necessidade de transporte de água por longas distâncias.

  5. Perda de serviços ecossistêmicos (nascentes secas, perda de habitats ribeirinhos).

O que precisa ser feito — agenda técnica e de governança

A crise é manejável se ações integradas e técnicas forem implementadas com urgência. Recomendo uma agenda prática e priorizada:

1. Monitoramento e transparência (base de dados única)

  • Consolidar e atualizar continuamente cadastros como o SIAGAS; exigir cadastro e telemetria para poços de maior porte. A transparência dos dados é pré-requisito para gestão.

2. Outorga e cobrança por uso bem desenhadas

  • Outorgar direitos de uso com base em estudo técnico de disponibilidade local; aplicar limites temporários em áreas em desequilíbrio; considerar tarifas ou instrumentos econômicos que internalizem o custo da extração excessiva.

3. Zoneamento e planos de gestão de aquíferos

  • Criar Planos de Gestão de Aquíferos por bacia (com metas de recarga/extração), integrados ao planejamento urbano e agrícola — incluindo zonas de proteção de nascentes e corredores de recarga.

4. Ferramentas técnicas — monitoramento contínuo e modelagem

  • Implantar redes de piezômetros, uso de sensoriamento remoto e modelos numéricos de fluxo que permitam simulações de cenários e previsão de drawdown e de impacto em rios.

5. Recarga artificial e soluções naturais

  • Implantar projetos-piloto de recarga artificial (injeção controlada, infiltração em áreas de recarga) e promover conservação de solos e cobertura vegetal para aumentar a infiltração natural (soluções baseadas na natureza).

6. Governança e capacitação

  • Fortalecer comitês de bacias, integrar municípios, estados e usuários; capacitar técnicos para monitoramento, modelagem e fiscalização.

Mensagem final — invisível não significa inevitável

A água subterrânea é um ativo estratégico e uma seguradora natural contra variabilidade climática — se for gerida com dados, regras e previsibilidade. O aumento de poços e a pressão sobre aquíferos, evidenciados por bases como a SIAGAS e relatórios da ANA, já mostram um cenário que merece atenção imediata. Com monitoramento robusto, outorgas técnicas, zoneamento de aquíferos e esforços de recarga (naturais e artificiais), é possível evitar que a crise invisível se transforme em colapso real de abastecimento em muitas regiões do Brasil.

Referências e leituras selecionadas

  • Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil — Informe ANA (2022/2023). Agência Nacional de Águas. snirh.gov.br

  • SIAGAS / SGB (CPRM) — relatório e nota sobre cadastro de poços (2024) — crescimento de poços registrados. SGB

  • Relatório Estudo dos Recursos Hídricos na Região Oeste da Bahia (Urucuia) — AIBA / estudos regionais (2019 e atualizações). aiba.org.br

  • Matéria e estudo sobre risco de perda de vazões de rios por extração subterrânea — Mongabay Brasil (2025). Notícias ambientais

  • Diagnósticos de rebaixamento e estudos locais em SP (PCJ, CETESB, SIGESP) — documentos técnicos e relatórios de plano de bacia.