A nova economia dos resíduos: do custo ao ativo ambiental

Uma nova abordagem na gestão de resíduos

Mário Marcelino, Dr.

10/31/20254 min read

A nova economia dos resíduos: do custo ao ativo ambiental

Por décadas, resíduos foram encarados como custo — um passivo a ser eliminado ou empurrado para aterros. Hoje, com a urgência climática, pressões regulatórias e avanços tecnológicos, essa visão está mudando: resíduos são matéria-prima, energia e valor econômico quando integrados a cadeias circulares e modelos de negócios que internalizam externalidades ambientais. Essa transição não é apenas conceitual; é suportada por legislação, dados e exemplos práticos que mostram como transformar passivo em ativo.

1. Contexto técnico e regulatório

A base jurídica que orienta essa transformação no Brasil é a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS, Lei nº 12.305/2010), que introduziu instrumentos chave: logística reversa, responsabilidade compartilhada e prioridades de gestão (não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento e disposição final). Essas ferramentas criam o arcabouço para empresas monetizarem fluxos antes considerados inservíveis.

No plano macro, o desafio é grande: estudos recentes sinalizam volumes elevados de resíduos urbanos no Brasil (milhões de toneladas/ano) e índices de recuperação ainda baixos — o que significa grande potencial de captura de valor com políticas e investimentos certos.

2. Quais são os “ativos” que podemos extrair dos resíduos?

Técnica e economicamente, resíduos podem virar ativos em várias frentes:

  • Materiais reciclados (reciclados mecânicos e químicos) — plásticos, metais, papel e vidro reentram como matérias-primas; a reciclabilidade e a pureza do fluxo determinam preço e aplicabilidade. A reciclagem química (pyrolysis, depolimerização, etc.) amplia opções para plásticos contaminados/complexos.

  • Energia (Waste-to-Energy, biogás) — resíduos orgânicos e rejeitos não recicláveis podem gerar calor, eletricidade ou biocombustíveis; modelos híbridos combinam triagem + WtE. Países como a Suécia transformaram grande parte do resíduo em energia com alta eficiência, servindo de referência.

  • Urban mining / metais críticos — e-waste, baterias e sucata contêm metais de alto valor. A “mineração urbana” permite recuperar cobre, níquel, lítio e terras raras.

  • Serviços e dados — plataformas de rastreabilidade, logística reversa e certificação geram receita recorrente (SaaS + serviços), além de entregarem conformidade e rastreabilidade ambiental.

3. Casos reais que comprovam a transformação em ativo

  • Braskem — reciclagem química e parcerias: investimentos e parcerias para desenvolver reciclagem avançada (chemical recycling) mostram como grandes petroquímicas estão convertendo fluxos plásticos complexos em insumos novamente utilizáveis, reduzindo dependência de feedstock virgem. Isso gera produto vendável e melhora indicadores ESG.

  • Ambipar — urban mining e plantas de reciclagem em escala: a Ambipar abriu instalações de grande porte para tratamento de resíduos eletrônicos e urban mining, demonstrando que escala e tecnologia viabilizam a recuperação de frações de alto valor em território nacional. Essas plantas transformam bens descartados em matérias-primas revendáveis e insumo para cadeias industriais.

  • Tetra Pak & parcerias locais: iniciativas de fabricantes e cooperativas que fortalecem a coleta seletiva e a logística reversa mostram o role das parcerias privadas-ONG-públicas para aumentar taxas de coleta e agregar valor à cadeia local de reciclagem.

  • Moura (baterias) — ciclo fechado: exemplos industriais onde a coleta e a reciclagem de baterias já alcançaram níveis próximos ao equilíbrio entre venda e reciclagem (1:1), demonstrando viabilidade econômica quando existe logística reversa consolidada.

  • Suécia (referência WtE): sistemas integrados de triagem, reciclagem e plantas WtE permitem que quase nada vá para aterro e que energia seja um subproduto econômico desse fluxo. Serve como benchmark tecnológico e regulatório.

4. Modelos de negócio e fontes de receita

Empresas que transformam resíduos em ativos normalmente combinam múltiplas fontes de receita:

  • Venda de reciclados (materiais processados);

  • Contrato de serviços (outsourcing) para gestão de resíduos de terceiros;

  • Geração e venda de energia (certificados e contratos PPA);

  • Créditos de carbono e instrumentos verdes (quando aplicáveis);

  • Pagamentos por logística reversa/EPR cobrados a fabricantes;

  • SaaS e dados (rastreabilidade, compliance, relatórios ESG).

Esses modelos funcionam melhor quando complementados por parcerias industriais, investimentos em triagem/qualidade e estabilidade regulatória (por exemplo, regras claras de EPR e incentivos fiscais).

5. Riscos e condicionantes técnicos

  • Qualidade do fluxo: materiais misturados e contaminados reduzem preços e opções tecnológicas; triagem no ponto de geração é crítica.

  • Escala e economia de logística: custos de transporte e tratamento podem corroer margens; centros regionais de processamento e hubs logísticos reduzem custos.

  • Regulação e mercado: volatilidade nos preços de commodities recicladas e lacunas regulatórias podem afetar a previsibilidade do retorno. A PNRS e instrumentos subsequentes criam base, mas execução municipal e infraestrutura ainda variam fortemente.

6. Recomendações práticas para empresas e investidores

  1. Mapear fluxos de resíduos com detalhe (composição, qualidade, volumes) — sem dados, não há modelo econômico confiável.

  2. Investir na triagem upstream (fontes geradoras): separar com qualidade aumenta preço e opções tecnológicas.

  3. Procurar parcerias público-privadas e cooperativas locais — aceleram coleta e legitimam projetos.

  4. Avaliar tecnologias híbridas (reciclagem mecânica + química; triagem óptica + processos químicos) conforme o tipo de fluxo.

  5. Projetar modelos financeiros que incluam receitas colaterais (serviços, energia, créditos) para melhorar a viabilidade.

  6. Comunicar ganhos ESG e KPIs de impacto — transparência aumenta valor de marca e atração de capital.

7. Conclusão — impacto e oportunidade

Transformar resíduos de custo em ativo exige integração técnica (triagem, tecnologia), regulatória (PNRS e EPR) e de mercado (demanda por reciclados e contratos de energia). O Brasil já vê iniciativas de players industriais (ex.: Braskem, Ambipar, Moura, parcerias de marcas) que comprovam viabilidade — mas a escala nacional depende de fortalecer coleta seletiva, infraestrutura de processamento e mecanismos que internalizem preços ambientais. Para empresas, a janela é clara: quem dominar a gestão de fluxo e a qualidade do material estará posicionado para capturar novos mercados e fortalecer sua agenda ESG.

Referências (selecionadas)

  • Lei nº 12.305/2010 — Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).

  • Panorama e dados sobre resíduos urbanos (estudos e revisões 2022–2024).

  • Ellen MacArthur Foundation — princípios e modelos de economia circular. ellenmacarthurfoundation.org

  • Braskem — iniciativas e estudos em reciclagem química.

  • Exemplos internacionais: modelos de Waste-to-Energy (Suécia). innovativebioenergy.com+1

  • Tetra Pak — parcerias para coleta e logística reversa no Brasil.

  • Moura — reciclagem de baterias e modelo de ciclo fechado.