A importância dos dados de campo no modelo matemático
A importância dos dados de campo, sua qualidade e representatividade na elaboração de modelos hidrogeológicos tridimensionais
Mário Marcelino, Dr.
11/6/20257 min read


A importância dos dados de campo, sua qualidade e representatividade na elaboração de modelos hidrogeológicos tridimensionais
Introdução
A modelagem hidrogeológica 3D – ou seja, a construção de um modelo que representa de forma tridimensional os volumes, estruturas, propriedades e fluxos de água no subsolo – é hoje uma ferramenta essencial em projetos de investigação de aquíferos, definição de zones de proteção, estudo de impacto de extrações, recarga artificial e mitigação de contaminações. Porém, a confiabilidade desses modelos está diretamente condicionada à qualidade, densidade, representatividade, adequação ao objetivo e à integridade dos dados de campo que alimentam o modelo.
A frase “um modelo vale aquilo que seus dados permitem” resume bem a situação: um modelo sofisticado numericamente, sem suporte de dados de campo bem concebidos, será propenso a erros de conceituação, calibragem inadequada ou previsões sem respaldo. Por isso, a figura de um hidrogeólogo experiente torna-se central: ele interpreta os objetivos do estudo, define quais dados são essenciais, planeja a campanha de campo, avalia incertezas e orienta as etapas de modelagem.
Dados como conversão de objetivos em medições
Antes de entrar nos tipos de dados, vale lembrar que todo levantamento de campo deve estar ligado ao objetivo do estudo. Exemplos de objetivos: estimar o volume de água subterrânea disponível em um aquífero, mapear zonas de recarga, avaliar impacto de bombeamentos, simular transporte de contaminantes ou definir padrão de recarga artificial. A partir desses objetivos, o hydrogeólogo experiente define quais variáveis precisam ser observadas (níveis, vazões, condutividade hidráulica, etc.), qual a escala espacial/temporal pretendida, qual o grau de heterogeneidade aceitável e onde priorizar amostragens.
Sem essa conexão entre objetivo → observável → campanha de campo, corre-se o risco de “colecionar dados” sem foco, ou de deixar lacunas críticas.
Qualidade e representatividade dos dados
Qualidade
Verificação e calibração de instrumentos de medição (ex.: piezômetros, permeâmetros, condutivímetros).
Procedimentos de controle de campo: registro de condições durante amostragem (hora do dia, clima, nível de água, operador), duplicatas, amostras em branco ou referência, verificação de logs de sondagem, registro de metadados (quem coletou, quando, onde, equipamento).
Verificação da cadeia de custódia dos dados, documentação de incertezas instrumentais e operacionais.
Padronização dos procedimentos para permitir comparabilidade entre diferentes pontos de coleta.
Representatividade
Espacial: A amostragem deve cobrir adequadamente a heterogeneidade esperada no sistema hidrogeológico — por exemplo, zonas de arenito vs zonas de fraturas, blocos de rocha vs interstícios; quanto maior a variabilidade esperada, maior deverá ser a densidade de pontos ou perfis. Estudos demonstram que a interpolação ruim de dados “esparsos” pode levar a interpretações equivocadas de unidades hidroestratigráficas.
Temporal: Para capturar dinâmica do sistema (ex.: resposta a recarga, variações sazonais, bombeamentos), é necessário dispor de séries temporais suficientemente longas ou com frequência adequada. Modelos estáticos podem não requerer tanto, mas modelos de fluxo ou transporte exigem. Exemplo: modelo 3D de fluxo calibrado para condição estacionária utilizou medidas de cabeças em 2017 como base.
Integração de diferentes fontes: dados pontuais (ex: furos, poços) não são suficientes sozinhos para definir volumes, contornos ou propriedades. A combinação com dados geofísicos, mapas de uso de solo, sensoriamento remoto ou perfis geológicos aumenta a representatividade e reduz incertezas.
Principais tipos de dados para um modelo hidrogeológico 3D
A seguir, listo os tipos de dados que normalmente são imprescindíveis para elaboração de um modelo hidrogeológico 3D, com indicação de por que são importantes, que cuidados devem ter e como um hidrogeólogo experiente avalia sua adequação.
1. Dados geológicos / litológicos / hidroestratigráficos
Logs de furos e sondagens: perfis litológicos com identificação de camadas, espessuras, constituição (areia, cascalho, argila, rocha fraturada) e, preferencialmente, parâmetros como porosidade, permeabilidade ou hidráulica. Por exemplo, em estudo na China foram usados 1.006 informações de furos para construir o modelo 3D hidro-litoestratigráfico.
Mapas estruturais: contatos litológicos, falhas, fraturas, topografia de rocha-base, inclinações e espessuras dos depósitos. Uma base geológica tridimensional é indispensável antes da modelagem de fluxo.
Desenvolvimento de modelo hidroestratigráfico: identificação de unidades aquíferas e aquitardos (ou zonas de fratura / matriz) com suas geometrias tridimensionais. Um trabalho mostrou que quanto maior a complexidade do modelo hidroestratigráfico (mais unidades, mais heterogeneidade) melhor foram as previsões de fluxo e descarga.
2. Dados hidrogeológicos – níveis, vazões, testes
Piezometria: níveis de água subterrânea em poços ou observatórios, de preferência com registro temporal, para compreender escoamento, recarga, zonas de descarga. Essencial para calibrar cabeças no modelo.
Vazões de poços de bombeamento ou abstração, testes de bombeamento/transmissividade: permitem estimar parâmetros hidráulicos como condutividade hidráulica, armazenamento, efeito de confinamento ou não-confinação. Um dos estudos realizou calibração manual/trial-and-error com vazões e níveis.
Recarga e descarga: estimativas de recarga (por precipitação, infiltração, percolação) ou descarga (rios, lagoas, evapotranspiração) são fundamentais para definir condições de contorno do modelo. Estudos recentes usam evapotranspiração obtida por sensoriamento remoto para alimentar modelos hidrogeológicos.
3. Propriedades hidráulicas e hidrogeomorfológicas
Condutividade hidráulica (K), transmissividade, coeficiente de armazenamento: frequentemente obtidas por ensaios de bombeamento, slug test, permeâmetros, ou estimativas derivadas de litologia/regressões. A variabilidade espacial desses parâmetros é uma das maiores incertezas nos modelos 3D.
Porosidade, matriz e fraturas (se aplicável): para sistemas de rocha fraturada, é essencial separar a circulação por matriz e por fraturas.
Anisotropia hidráulica (diferença entre condutividade horizontal e vertical) e heterogeneidade espacial (zonas de alta/baixa K), que exigem densidade de dados suficientes para capturar padrão.
Limites de aquífero: altura, espessura, topografia do topo e base do aquífero ou unidade hidroestratigráfica.
4. Dados geofísicos e de sensoriamento remoto
Perfis elétricos (ex.: sondagem elétrica, VES), sísmica ou outros métodos geofísicos podem apoiar a delimitação de unidades hidroestratigráficas e fraturas, sobretudo em áreas com pouca perfuração. Por exemplo, estudo usou dados aero-Eletromagnéticos na construção de modelo 3D.
Dados de sensoriamento remoto: cobertura vegetal, uso do solo, evapotranspiração, subsídios para recarga ou zonas de descarga. O uso de evapotranspiração obtida via satélite para alimentar modelos hidrogeológicos recentes foi demonstrado.
5. Dados de contorno e de superfície — interação solo-subsolo-água superficial
Topografia/elevação digital (DEM): importante para delimitar o domínio do modelo, definir limiares de infiltrção e descarregamento, taludes, bacias de recarga.
Hidrografia (rios, lagos, zonas húmidas), uso do solo, vegetação, que influenciam recarga e fluxo superficial-subterrâneo.
Dados de limites hidráulicos: por exemplo, fluxos de rio-aquífero, lençol livre ou confinado, contacto aquífero-rocha, marinha (em costas). Um bom modelo 3D precisa desses contornos bem definidos.
Integração e workflow de modelagem tridimensional
Um hidrogeólogo experiente estrutura o processo em etapas lógicas:
Revisão pré-campanha: Estabelece objetivos do estudo, define as questões de interesse (por exemplo, disponibilidade de água, impacto de extração, vulnerabilidade a contaminação).
Planejamento da campanha de campo: Seleciona locais de furos, transectos, poços de monitoramento, ensaios de bombeamento, perfis geofísicos. Define periodicidade de medições, metadados e procedimentos de QA/QC.
Coleta de dados: Executa sondagens, perfis, testes de bombeamento, medições de nível, amostras de água, ensaios geofísicos.
Verificação de qualidade e processamento: Confirma calibração de instrumentos, registros completos de metadados, cheque de duplicatas/contraprovas e tratamento de dados (“limpeza”), análise de outliers, verificação da consistência geológica/hidrogeológica.
Construção do modelo conceitual: Com base nos dados de campo, o hidrogeólogo elabora o modelo conceitual do sistema (unidades hidroestratigráficas, escoamentos dominantes, limites, recargas, zonas de descarga). Essa etapa é fundamental antes de desenvolver o modelo numérico.
Modelagem 3D geológica e hidroestratigráfica: Interpretação dos dados litológicos, geofísicos, espaciais para construir superfícies de contato, volumes de unidades hidroestratigráficas, heterogeneidades internas. Estudos mostram que maior detalhamento melhora resultados, mas também exige mais dados.
Distribuição das propriedades hidráulicas: Aplicar valores de condutividade hidráulica, porosidade, anisotropia por unidade, muitas vezes com zoneamento ou tratamento estatístico/geostático para capturar heterogeneidade.
Definição de contornos e condições de fronteira: Determinar recarga, fluxos de margem, interação com águas superficiais ou marinhas, abstrações.
Calibração e validação do modelo: Usar dados de nível, vazão, testes de bombeamento para calibrar o modelo, ajustar parâmetros hidráulicos ou reconhecimento de lacunas de dados. A qualidade e a representatividade dos dados são fundamentais para esta etapa.
Simulação de cenários e análise de incerteza: Uma vez calibrado, o modelo 3D pode ser usado para simular extrações, recargas artificiais, contaminação, etc. Contudo, deve-se sempre comunicar os limites de confiança — frequentemente decorrentes de dados limitados ou não representativos.
Impacto de falhas no processo de dados
Quando os dados são de baixa qualidade ou representam mal a realidade do sistema, várias consequências negativas ocorrem:
O modelo conceitual pode estar equivocado, levando a unidades hidroestratigráficas mal definidas ou fluxo mal interpretado.
A interpolação de dados esparsos pode introduzir grandes erros de representação de heterogeneidade hidráulica ou geometria de aquíferos. Por exemplo, estudo mostra que modelos mais simples subestimaram descarga de água em zonas de turfeiras quando comparados a versões mais complexas.
A calibração pode “mascarar” erros conceituais ou de distribuição de parâmetros, levando a previsões com baixa confiabilidade ou altamente condicionadas aos dados históricos, mas pouco robustas a cenários futuros.
A tomada de decisão baseada no modelo torna-se arriscada: estimativas de volume, zonas de proteção, impactos de extração podem estar sub ou super-estimadas.
Falta de documentação de incertezas e falhas no controle de qualidade reduzem a transparência técnica do relatório e a credibilidade junto aos tomadores de decisão ou órgãos reguladores.
Conclusão
Em resumo, a construção de um modelo hidrogeológico tridimensional exige mais do que software sofisticado ou malha numérica refinada: exige dados de campo robustos, coletados com propósito, qualidade e representatividade.
O papel do hidrogeólogo experiente é central — na definição das campanhas, no controle de qualidade, na interpretação geológico-hidrogeológica, na construção do modelo conceitual e em toda a cadeia até a simulação numérica. Investir cedo em dados apropriados reduz incertezas, aumenta a confiabilidade dos resultados e fortalece a utilidade do modelo como ferramenta de gestão de recursos hídricos subterrâneos.
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