A Água Subterrânea e seu papel na indústria de bebidas

A importância da água subterrânea na indústria das bebidas, a influencia nas características e qualidade dos produtos.

Mário Marcelino, Dr.

10/16/20257 min read

A Água Subterrânea e seu papel na indústria de bebidas

Uma bebida é, em sua essência, água — e é justamente nela que reside a alma de seu sabor. O que poucos percebem é que a origem e a qualidade dessa água, muitas vezes subterrânea, podem transformar completamente a experiência sensorial de uma bebida. Minerais, pH, pureza e composição natural da água influenciam desde a textura de um vinho até o frescor de uma cerveja ou a suavidade de um destilado. Em outras palavras, antes de um bom rótulo, há sempre uma boa fonte.

A água é o insumo essencial na indústria de bebidas, representando em média mais de 90% da composição de produtos como cervejas, refrigerantes, sucos, destilados, chás e águas minerais. Desde a Antiguidade, o ser humano percebeu que a qualidade e as propriedades da água influenciam diretamente o sabor e a aceitação das bebidas — registros históricos apontam que civilizações antigas já escolhiam suas fontes de água para produzir cervejas e vinhos mais agradáveis ao paladar. No Brasil, esse entendimento se consolidou com o avanço da indústria de bebidas e o crescimento do consumo de águas minerais naturais, que valorizam a pureza e a estabilidade da composição subterrânea.

A água subterrânea, captada em aquíferos, poços ou nascentes, destaca-se por oferecer pureza química e microbiológica, estabilidade na composição mineral e disponibilidade constante — fatores que reduzem custos de tratamento e asseguram maior previsibilidade no processo produtivo. Além de favorecer a economicidade do empreendimento, a água subterrânea garante uniformidade de sabor, fundamental para bebidas que dependem da repetibilidade de lotes e da confiança do consumidor.

Influência da Composição da Água no Sabor e na Qualidade

A composição química da água tem papel determinante no perfil sensorial das bebidas. Minerais como cálcio (Ca²⁺), magnésio (Mg²⁺), sulfatos (SO₄²⁻), cloretos (Cl⁻) e bicarbonatos (HCO₃⁻) afetam diretamente o sabor, o corpo e até a textura da bebida.

Na produção de cerveja, por exemplo, águas com alto teor de sulfato realçam o amargor do lúpulo, enquanto cloretos destacam o sabor maltado e aumentam a sensação de corpo. Já o cálcio e o magnésio influenciam o pH da mostura e a eficiência enzimática durante a fermentação. O equilíbrio entre esses elementos define não apenas o sabor, mas também a estabilidade química e microbiológica da bebida.

Segundo Ávila et al. (2022), no estudo Influência da Composição Mineral da Água na Qualidade da Cerveja (Editora Científica), é possível “calibrar” o perfil mineral da água conforme o estilo desejado — uma técnica comum em cervejarias artesanais que adaptam a dureza, a alcalinidade e a proporção de íons dissolvidos para alcançar perfis específicos.

Um exemplo notável é a Cervejaria Petrópolis, cuja água de origem subterrânea contribui para o sabor suave e a boa aceitação sensorial de suas cervejas. Assim como em cidades europeias clássicas (Pilsen, Munique, Dublin), a composição natural da água local tornou-se parte da identidade do produto.

Características Técnicas e Dados Brasileiros

Estudos nacionais mostram que as águas subterrâneas destinadas à produção de bebidas variam conforme a geologia da região. Dados compilados pela Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (ABAS) indicam que 79,4% das águas minerais e potáveis de mesa brasileiras apresentam dureza branda (< 50 mg CaCO₃/L), 13,6% são pouco duras (50-100 mg/L), 5,5% duras (100-200 mg/L) e apenas 1,5% muito duras (> 200 mg/L).

Pesquisas em Minas Gerais (Agro’n Food Academy, 2023) apontam nascentes com dureza entre 39 e 47 mg/L, alcalinidade de 20 a 30 mg/L e pH entre 6,9 e 7,1, condições consideradas ideais para bebidas leves. Já em Pesqueira (PE), medições indicaram dureza de 256 mg/L e pH de 7,5, mostrando a necessidade de ajustes quando se busca uma água mais equilibrada para estilos específicos de cerveja.

Em cervejas do tipo Pilsen e Lager, o ideal é manter cálcio entre 50 e 75 ppm, magnésio entre 0 e 30 ppm e pH de mostura em torno de 5,2 a 5,6. Já estilos mais intensos, como IPA e Stout, demandam teores maiores de minerais para realçar o amargor e a densidade sensorial (ACervA Capixaba, 2023).

Água subterrânea e o vinho

A qualidade de um vinho começa muito antes da colheita da uva — começa no subsolo. A água subterrânea desempenha um papel essencial no desenvolvimento da videira, influenciando desde o vigor das plantas até a concentração de açúcares, ácidos e compostos aromáticos que determinam o sabor e a estrutura do vinho.

O lençol freático e sua profundidade afetam diretamente o regime hídrico do solo, controlando a disponibilidade de água para as raízes. Em solos com boa drenagem e recarga subterrânea equilibrada, a videira é forçada a buscar água em profundidade, o que reduz o excesso de vigor e concentra os nutrientes nos frutos — fator determinante para vinhos de alta qualidade. Já em áreas com saturação hídrica ou lençol raso, há maior risco de doenças radiculares e uvas menos equilibradas.

Estudos internacionais confirmam essa relação. Em Rioja (Espanha), um acompanhamento de cinco anos (2010–2014) mostrou que vinhedos com maior capacidade de retenção de água (SWHC) e mais nitratos produziram uvas mais vigorosas, porém com menor teor de polifenóis e antocianinas, o que impacta negativamente a complexidade dos vinhos (OENO One, 2024). Na França, o Instituto de Vinha e Vinho (IFV) desenvolveu o sistema “E-Terroir”, que monitora o nível de água subterrânea em tempo real no Vale do Loire, permitindo ajustar o manejo hídrico e prever impactos de secas sazonais sobre o equilíbrio das uvas.

No Alto Ádige (Itália), estudos geoquímicos em vinhedos de Gewürztraminer e Sauvignon Blanc demonstraram que a composição mineral da água subterrânea — especialmente cálcio, potássio, magnésio e estrôncio — afeta a acidez e a expressão aromática dos vinhos (IVES Open Science, 2023). Essa mineralização natural está intimamente ligada ao conceito de terroir, pois confere identidade sensorial ao produto final.

Revisões científicas, como “Soil-related terroir factors: a review” (OENO One, 2018), reforçam que a textura, a drenagem e a profundidade do solo determinam o armazenamento de água (SWHC variando de 50 a 350 mm), e que o equilíbrio hídrico controlado é crucial para a formação de compostos fenólicos e taninos. Um leve estresse hídrico, oriundo da limitação moderada da água subterrânea, intensifica o sabor e o aroma das uvas, sem comprometer o rendimento.

Portanto, compreender o comportamento da água subterrânea — sua profundidade, mineralização e variação sazonal — é essencial para a gestão hídrica sustentável na viticultura. A irrigação controlada, baseada em estudos hidrogeológicos, não apenas otimiza o uso da água e preserva os aquíferos, como também permite que o vinho expresse de forma autêntica o solo e o clima de sua origem.

No Brasil, regiões como o Vale dos Vinhedos (RS) e a Serra Catarinense já demonstram interesse crescente por esse tipo de pesquisa, especialmente em áreas onde a irrigação suplementar e o monitoramento de aquíferos rasos tornam-se estratégicos frente às mudanças climáticas. A água subterrânea, portanto, não é apenas um recurso natural — é parte invisível, porém decisiva, do caráter e da identidade de cada vinho.

A Água Mineral: Diversidade e Valor Comercial

A água mineral natural é um dos exemplos mais claros do uso direto da água subterrânea na indústria de bebidas. Captada de fontes protegidas, ela é engarrafada sem tratamento químico, preservando suas características originais. No Brasil, o Código de Águas Minerais (Decreto-Lei nº 7.841/1945) define diferentes classificações:

  1. Água mineral natural – pura, estável e de composição constante;

  2. Água mineral naturalmente gaseificada – contém CO₂ natural;

  3. Água com gás adicionado – gaseificação artificial para consumo;

  4. Água de mesa – potável, mas sem as propriedades físico-químicas definidas para mineral natural.

O teor de resíduo seco total (TDS) é usado para classificar sua mineralização:

  • Baixa mineralização: até 50 mg/L

  • Média: 50 a 500 mg/L

  • Alta: acima de 500 mg/L

O mercado brasileiro conta com marcas consagradas como Minalba, Lindoya, São Lourenço, Cambuquira, Caxambu e Serra Negra, cujas fontes são reconhecidas pela estabilidade e pelo sabor característico, resultante de minerais dissolvidos específicos.

Além de seu valor sensorial, a água mineral tem grande peso econômico: segundo o Serviço Geológico do Brasil (SGB, 2023), o país possui mais de 1.200 fontes registradas, e o setor movimenta bilhões de reais por ano, sendo um dos principais usos econômicos diretos da água subterrânea.

Disponibilidade e Sustentabilidade

A utilização de água subterrânea na indústria de bebidas demanda gestão responsável. A recarga natural dos aquíferos, o controle de extração e a proteção sanitária das captações são fundamentais para garantir a sustentabilidade da produção. O Aquífero Guarani, por exemplo, é um dos maiores reservatórios subterrâneos do mundo e abastece diversas indústrias no Sul e Sudeste do país — especialmente nas regiões de São Paulo e Paraná, onde a água de alta qualidade e baixo custo operacional é diferencial competitivo.

Com técnicas de monitoramento e uso racional, a indústria de bebidas pode conciliar produtividade e preservação ambiental. Estudos mostram que o custo de produção com água subterrânea é até 40% menor que o uso de água superficial tratada, especialmente em locais onde a rede pública é limitada.

Conclusão

A água subterrânea é mais do que um insumo: é o elemento estruturante da qualidade e identidade das bebidas. Sua composição mineral influencia diretamente o sabor, a textura, o aroma e até a percepção do consumidor. Na indústria de bebidas — especialmente cervejas, águas minerais e refrigerantes — a gestão e o conhecimento técnico sobre a água utilizada são fatores estratégicos que afetam tanto a aceitação sensorial quanto a viabilidade econômica e ambiental do negócio.

O futuro do setor depende da integração entre ciência hidrogeológica, tecnologia de produção e gestão sustentável dos recursos hídricos subterrâneos — um compromisso que garante não apenas produtos de excelência, mas também a preservação das fontes que os tornam possíveis.